Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
Transgression, crime, neurosciences: impasses to the knowledge of psychoanalysis?
Julio Cesar Diniz Hoenisch1 Pedro José Pacheco2 Carlos da Silva Cirino3
Palavras-chave Transgressão, crime e neurociências. Resumo O presente artigo trata de algumas questões despertadas pelo florescimento das neurociências, de um supostodesgaste da psicanálise diante dessa revolução, articulando as posições epistemológicas tanto de um quanto outro campo de saber sobre o sujeito, a sociedade contemporânea e a criminalidade. Problematiza também a construção de diagnósticos “criminais” precoces e fartamente divulgados pela mídia sem fundamentos empíricos para tanto, o que resulta em uma mistificação do criminoso e constrói umarepresentação “mágica” da área psi sobre seu modo de trabalho. Por fim, aponta os impasses da psicanálise diante das demandas contemporâneas e dos discursos totalitários, tanto místico/religiosos quanto neurocientíficos radicais, indicando ser a ética o necessário fio condutor para uma reflexão sobre as políticas de existência e a manutenção da área psi como veiculadora destas práticas de modo implicado.GENEALOGIAS DO SABER PSICANALÍTICO A Psicanálise, desde seu advento, sofreu variações conceituais, estruturais e políticas de saber e verdade consideráveis. A construção dos ensaios clínicos do Dr. Freud escandalizou a Viena da época por evidenciar a sexualidade da criança e por colocar que uma clínica da escuta dos sentidos era possível, ocasionando assim uma reorganização da subjetividade dequem fala. Na primeira assertiva, o escândalo estava na profanação da infância, construída como inocente e pura no século XVIII, e, na segunda, no fato de uma “cura” sem medicamentos e sem invasões corporais mais objetivas e visíveis. Logo, a psicanálise nasce envolta em
uma aura transgressora, afastada da moral burguesa. Não se tratava de uma escuta fácil de ser construída, visto que aempreitada freudiana custaria muito caro a seu inventor. É interessante utilizar o termo “invenção” e não “descoberta” para não alimentar a ideia de tratar-se de um fato natural, que já estaria lá, e a neutra e imparcial tarefa do pesquisador/analista seria desvendar sua verdade implícita. Não se trata disso aqui, em que pese o desejo inicial de Freud de que a psicanálise fosse uma ciência natural(PALOMBINI, 1995). Tomamos o inconsciente como produção discursiva que instaura o laço social sempre cambiante e produto/produtor do sujeito do desejo, tendo o pesquisador/ analista a implicada e complicada tarefa de questionar as certezas e problematizar verda-
1 Psicólogo, especialista em saúde pública/Fiocruz, Mestre em Psicologia/PUC/RS, Professor da Universidade Tiradentes/SE. 2 Psicólogo,especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), doutorando em Psicologia (PUCRS) e Professor do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Santiago – RS. 3 Psicólogo, mestre em Psicologia Social (UFPB), Professor da Universidade Tiradentes. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 200981
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
des e saberes totalitários. Ou seja, nessa perspectiva, “o inconsciente não é uma realidade psíquica que cada um carrega, como se fosse uma propriedade da alma, oculta, ignorada, que se desvela, revela, descobre” (BUENO, 2002, p.30), porém se faz a partir da lógica do discurso, “uma lógica necessariamenteparadoxal, já que é o sujeito mesmo que produz a verdade que acredita descobrir” (JERUSALINSK, 2007, p.136), pois é ele quem a inventa na relação com o outro. Decorridos mais de um século da construção de sua clínica e dedicados estudos epistemológicos (JAPIASSU, 1998), o estatuto científico da psicanálise não se atém ao modelo das ciências naturais, nem das ciências humanas, divisão clássica das…